sexta-feira, 31 de maio de 2013

Mia Couto, Prémio Camões 2013

 

O vencedor do prémio literário mais importante da criação literária da língua portuguesa é o escritor moçambicano Mia Couto,  autor de livros como Raiz de Orvalho, Terra Sonâmbula e A Confissão da Leoa . É o segundo autor de Moçambique a ser distinguido, depois de José Craveirinha em 1991.

O júri justificou a distinção de Mia Couto tendo em conta a “vasta obra ficcional caracterizada pela inovação estilística e a profunda humanidade”, segundo disse à agência Lusa José Carlos Vasconcelos, um dos jurados. 

A obra de Mia Couto, “inicialmente, foi muito valorizada pela criação e inovação verbal, mas tem tido uma cada vez maior solidez na estrutura narrativa e capacidade de transportar para a escrita a oralidade”, acrescentou Vasconcelos. Além disso, conseguiu “passar do local para o global”, numa produção que já conta 30 livros, que tem extravasado as suas fronteiras nacionais e tem “tido um grande reconhecimento da crítica”

"Escritor Mia Couto ganha Prémio Camões", a notícia completa no jornal Público. (27 de maio)


Eis um excerto de uma das suas Estórias abensonhadas, intitulada...


NAS ÁGUAS DO TEMPO

Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.

 — Mas vocês vão aonde?

Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.

— Voltamos antes de um agorinha, respondia.

Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.

Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava.

— Sempre em favor da água, nunca esqueça!

Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.

Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.

De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.

— Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?

Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.

— Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar- se? 

Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.

Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:

— Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte...

O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de du vidar.



segunda-feira, 27 de maio de 2013

Manifesto Anti-Dantas (Almada Negreiros)



O Manifesto Anti-Dantas e por extenso é um texto da autoria de José de Almada Negreiros, publicado em 1915 por ocasião da estreia da peça de teatro Soror Mariana Alcoforado de Júlio Dantas.

Em 1915 foi publicado o segundo número da Revista Orpheu, marco inicial do Modernismo em Portugal, onde participaram nomes como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Armando Côrtes-Rodrigues. Todavia, a sua novidade, o seu arrojo, a sua ousadia tanto na produção literária como pictórica, causou escândalo junto da burguesia lisboeta conservadora. Entre os muitos opositores ao movimento estava o médico e escritor Júlio Dantas, cuja crítica aos vanguardistas foi feroz. Através deste manifesto, Almada reagia publicamente, utilizando Júlio Dantas como símbolo das posições mais retrógradas.

Vale a pena escutar o Manifesto dito por Mário Viegas neste link.




MANIFESTO ANTI-DANTAS

Basta pum basta!!!

Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!

Abaixo a geração!

Morra o Dantas, morra! Pim!

Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!

Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!

O Dantas é um cigano!

O Dantas é meio cigano!

O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!

O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!

O Dantas é um habilidoso!

O Dantas veste-se mal!

O Dantas usa ceroulas de malha!

O Dantas especula e inocula os concubinos!

O Dantas é Dantas!

O Dantas é Júlio!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d'Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!

E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!

O Dantas é um ciganão!

Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!

Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!

O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro!

O Dantas é um soneto dele-próprio!

O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.

O Dantas nu é horroroso!

O Dantas cheira mal da boca!

Morra o Dantas, morra! Pim!

O Dantas é o escárnio da consciência!

Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!

O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!

O Dantas é a meta da decadência mental!

E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!

E ainda há quem lhe estenda a mão!

E quem lhe lave a roupa!

E quem tenha dó do Dantas!

E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!

Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:

A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!

A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.

A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.

A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.

Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.

E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda... Quem está aí?... E de candeias apagadas?

- Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror... E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d'alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.

Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d'interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d'investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o público já está farto de saber - que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.

Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.

A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.

Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "Século" a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.

E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.

E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.

Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa? Não Mil vezes não!

Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.

E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecelidades do Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pinto hu hi e os burros de cacilhas e os menos do Alfredo Guisado! E (o) raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!

E as convicções urgentes do homem Cristo Pai e as convicções catitas do homem Cristo Filho!...

E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!

Morra o Dantas, morra! Pim!

Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!

Morra o Dantas, morra! Pim!


José de Almada Negreiros
Poeta d'Orpheu
Futurista E Tudo

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Nuno Júdice vence Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana



Lusa e PÚBLICO 16/05/2013 - 15:43 

Dez anos depois de Sophia de Mello Breyner ter recebido o prémio em 2003. 

Assinalamos a notícia no nosso blogue com a publicação de uns versos deste autor.


PLANO

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Evasão (José Régio)

José Régio


EVASÃO

O gigantesco desenho da ponte se lhe debuxava agora à esquerda, com o seu arco imenso meio afogado no nevoeiro, que adensara. O vento caíra. E como o crescente da lua se desvanecia no céu brumaceiro, de luar não havia senão uma frialdade semiluminosa, muito vaga, esparsa. Na grande mancha negra, lodosa, que era agora o Douro, retorciam-se como longos parafusos em brasa as luzes de Vila Nova de Gaia. Reflectiam outras luzes espalhadas aqui, ali, além, pequeninas, ao mesmo tempo esfumadas e nimbadas pela névoa. Junto ao cais, quase aos pés de Lèlito, mais se adivinhava do que distinguia na facha tenebrosa uma  complicação de vultos de barcos. Mas havia aí lume, vozes abafadas, ele vez em quando um gorgolejo ou chape-chape de água.

Depois das vielas por onde se encafuara, já tudo isto daria a Lèlito uma quase favorável impressão de largueza, companhia, (pois não havia gente nesses barcos? não era o que ainda o reanimava, sentir a proximidade humana de vez em quando?) se a dupla inquietação de se achar afastado do centro da cidade, e sem ver onde poderia esperar a manhã, o não enchesse de cruéis incertezas. Como se encaminhara, sequer, tão naturalmente, para estes lugares pouco tranquilizadores?

Não poderia ter ido parar às vias mais concorridas? Decerto haveria aí algum café aberto, qualquer lugar onde ficasse. Dir-se-ia que um obscuro desígnio do destino (ou uma impulsão secreta) não só aqui o atraíra, a tais paragens, mas até nelas o retinha; e que, não obstante os seus terrores, uma curiosidade ansiosa, doentia, e um desespero e um desleixo de todo o ser – o guiavam nesta inútil e inesperada peregrinação. Lèlito suspeitou que se lhe revelava o gosto das aventuras perigosas, e que era uma expectativa delas que o dirigia...

Ao cabo de uns momentos verifi cara não ser o único vadiando à margem do rio. Um ou outro pequeno grupo se demorava, ainda, nas sombras daquelas portas escondidas sob antigos arcos; umas abaixo do empedrado negro, ao fundo de quaisquer degraus, outras rasgadas numa espécie de muralha sobre que se erguiam prédios estreitos como torres, com varandas de velhas madeiras, ou casarões imundos e sólidos. Não obstante a amplidão do horizonte em frente, um cheiro igualmente nauseabundo envolvia todas essas portas, penetrara para sempre essas pedras; mas aqui cheirava ainda a frutas podres (que iam ficando do mercado diário), pó de carvão, águas chocas e comidas azedas. Eram, decerto, moradores ou frequentadores retardatários destes antros, os raros vultos que ainda por ali.

Demoravam.

José Régio


O conto completo aqui.





quinta-feira, 9 de maio de 2013

Luta de classes (José Luís Peixoto)



Luta de classes

Admiro o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o povo quotidiano. Gosto de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com as mãos. Devo tanto à cultura deste povo como devo a Dostoievski 

José Luís Peixoto, Texto publicado na VISÃO 1052, de 2 de maio




Não contem comigo para defender o elitismo cultural. Pelo contrário, contem comigo para rebentar cada detalhe do seu preconceito.

A cultura é usada como símbolo de status por alguns, alfinete de lapela, botão de punho. A raridade é condição indispensável desse exibicionismo. Só pertencendo a poucos se pode ostentar como diferenciadora. Essa coleção de símbolos é descrita com pronúncia mais ou menos afetada e tem o objetivo de definir socialmente quem a enumera. 

Para esses indivíduos raros, a cultura é caracterizada por aqueles que a consomem. Assim, convém não haver misturas. Conheço melhor o mundo da leitura, por isso, tomo-o como exemplo: se, no início da madrugada, uma dessas mulheres que acorda cedo e faz limpeza em escritórios for vista a ler um determinado livro nos transportes públicos, os snobs que assistam a essa imagem são capazes de enjeitá-lo na hora. Começarão a definir essa obra como "leitura de empregadas de limpeza" (com muita probabilidade utilizarão um sinónimo mais depreciativo para descrevê-las). 

Este exemplo aplica-se em qualquer outra área cultural que possa chegar a muita gente: música, cinema, televisão, etc. Aquilo que mais surpreende é que estes "argumentos", esta forma de falar e de pensar seja utilizada em meios supostamente culturais por indivíduos supostamente cultos, e só em escassas ocasiões é denunciada como discriminadora do ponto de vista sexual ou social. 

Isso são livros de gaja, dizem eles. Às vezes, para cúmulo, há mesmo mulheres que dizem: isso são livros de gaja.

A raiz da minha cultura não pertence ao elitismo. Tenho orgulho das minhas origens, do meu avô pastor, do meu pai carpinteiro, como outros têm orgulho dos seus longos nomes compostos. 

Depois de um trabalho que encerre convicções profundas, que tenha em conta os princípios da sua área artística, que seja consciente da história dessa área e que faça uma proposta coerente e inovadora, acredito na divulgação o mais ampla possível. 

Esconder uma obra em tiragens de 300 exemplares não lhe acrescenta um grama de valor artístico. Quando essa falta de divulgação resulta de uma escolha, pressupõe, quase sempre, falta de consideração pelo público, a crença de que um público mais vasto seria incapaz de entender tamanha sofisticação.

Acredito que a poesia pode ser publicada em caixinhas de fósforos, escrita com trincha ou spray nas paredes, impressa em t-shirts, afixada no facebook. Em qualquer um desses lugares, será diferente, mas em todos continuará a ser poesia. 

É ridícula a ideia de que a divulgação deturpa. A banalização é sempre tarefa de quem banaliza e não do objeto banalizado. Quem não for capaz de convocar os seus sentidos e a sua razão para apreciar uma determinada obra, apenas por acreditar que se encontra muito difundida, tem problemas graves ao nível do espírito crítico e da isenção mais básica. Esse é um daqueles casos em que se aconselha a lavagem de olhos. É aí que reside a deturpação.

Admiro o povo ao qual pertenço. Não o povo mitificado, admiro o povo quotidiano. Gosto de ir a feiras. Gosto de comer frango assado com as mãos. Devo tanto à cultura deste povo como devo a Dostoievski Há alguns meses, a personagem de uma telenovela citou um poema escrito por mim. Toda a gente da minha rua viu e ouviu. A minha mãe ficou orgulhosa e eu também. 

Chamo-me José ou, se preferirem, Zé. Desprezo o elitismo. O verbo não é exagerado, adequa-se bem ao que sinto.

Hei de sempre divulgar o meu trabalho na máxima dimensão das minhas capacidades. Devo esse esforço à convicção que tenho naquilo que escolhi dizer. Fico feliz se vejo os meus livros disponíveis em supermercados, estações de correios, bombas de gasolina ou bibliotecas públicas. 

Aquilo que faço não existe sozinho, precisa de alguém que lhe dê sentido, o seu próprio sentido e interpretação pessoal. Se uma árvore cair sozinha na floresta, sem ninguém por perto, será que faz barulho? Por esse motivo, o esforço de divulgação é também uma mostra de respeito para com essas pessoas, é um sinal da minha crença nelas e no seu valor. Exatamente como estas palavras, que existem porque estás a lê-las. 

Escrevo romances, a minha força de vontade é enorme. Tenho 38 anos, conto estar por cá durante bastante tempo. Tenho ainda muito por fazer. Habituem-se. Não tenho medo.

 José Luís Peixoto


segunda-feira, 6 de maio de 2013

Aos 12 anos (Pedro Rolo Duarte)



AOS 12 ANOS
(Crónica originalmente escrita para a revista Lux Woman)

Quando a directora me disse que a revista fazia 12 anos, senti uma espécie de frio na barriga. Ela nem sequer pediu que a crónica fosse alusiva à data, mas senti-me subitamente a rodopiar numa espécie de funil que me mergulhou no passado. Num instante lembrei-me que o tempo existia e senti-me com 12 anos.

Recuei. Voltei à entrada do Liceu de Camões e vi-me sentado numa carteira manhosa, num anexo meio-improvisado, com uma professora de inglês a perguntar-me a cor das minhas unhas. Estava na fase da aversão à água, e o pediatra que os meus pais consultaram terá explicado, numa onda revolucionária (era ainda o ano de 1976...), que há “uma fase assim mesmo”, os rapazes não tomam banho. O resultado foi lamentável, uma vergonha na turma, mas nem por isso impeditivo de alinhar politicamente e me empenhar nessa guerra já então perdida. Até perceber que aquilo a que chamavam “centralismo democrático” não era mais do que uma ditadura a fingir-se de democracia, andei por aquelas bandas todo contente. Mas não deixava de ter 12 anos. De dia, militante político e fumador dos primeiros SG-Filtros da vida...

... E depois de noite, em casa, inventando jornais para a família e criando cidades de Lego onde me imaginava bombeiro. A vida aos 12 anos é uma enorme confusão, pelo menos para o rapaz que eu fui: num mesmo universo misturam-se a vontade infantil de brincar com Legos e carrinhos e a convicção adolescente de que se pode fumar ou beber café, mas também a paixão assolapada que nos faz sofrer profundamente. Ter 12 anos é o maior drama de uma existência – ainda não se é mais do que uma criança, mas já se sente a adolescência e julgamo-nos donos da razão. Pior é impossível.

O outro lado deste drama é maravilhoso: aos 12 anos, uma paixão é mais ou menos como correr a maratona e ganhar. Falta-nos em ar o que nos sobra em felicidade, e a angústia tem um sabor próximo do algodão doce. A vida corre suavemente sobre os carris dos pais, da escola, e de um mapa bem desenhado. Ah, e temos muito mais direitos do que obrigações...

Mas há um drama maior quando se tem 12 anos. Chama-se, em psicologia barata, “a seguir temos 13 anos”. Melhor dito: é quando nos deixam de desculpar os 12 anos e nos cobram o que há a cobrar. É cair na realidade e perceber que a idade não apenas não é um posto, como rapidamente deixa de ser uma desculpa.

Quando, aos quatro anos, a filha mais pequenina de uma amiga diz que “nasceu na eternidade”, toda a gente ri, é romântico e fica bem. Quando eu, aos 13 anos, disse aos meus pais que “nasci com o direito a dedicar-me à política e chumbar o ano por faltas”, não teve graça, ninguém riu, e foi uma estupidez sem nome. Hoje não me sobram dúvidas: a vida vive-se ao contrário. Quando se sabe o que antes se devia saber, é tarde para aplicar o que se aprendeu. E quando nada se sabe e tudo se julga saber, não há como iluminar a sombra invisível. O que vale é que nascemos todos iguais: por mais tecnologia, internet e redes sociais que se criem, ninguém vai saber aos 12 o que devia saber aos 30. Nem o contrário. E no dia em que a nossa Lux Woman faz 12 anos, há quem esteja a nascer, há quem esteja a morrer. Mas em nome das velas a apagar, há quem tenha 12 anos e sofra o pior dia da existência porque não sabe se o miúdo lá do fundo da sala olhou mesmo, fingiu olhar, sorriu, ou é aquele perfil do Facebook que lhe pediu amizade. Aos 12 anos, o fim do mundo é qualquer destas coisas. E é tão bom, não foi?

Pedro Rolo Duarte

(Abril 2013)

Blog de Pedro Rolo Duarte




quinta-feira, 2 de maio de 2013

Ah, mundo (Mario Quintana)




AH, MUNDO

Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
- rotos e felizes! -
por essas estradas do mundo.

Mario Quintana