quinta-feira, 27 de março de 2014

Ó vizinha, dá-me salsa? (em três andamentos para abreviar)



Ó vizinha, dá-me salsa? (em três andamentos para abreviar)

1 (Allegro) - Sem família próxima, muda-se para uma casa das proximidades. Fecha-se numa oficina, a criar peças fantásticas. Começam, pela vizinhança, a estranhar a ausência prolongada. Batem-lhe à porta, aparece debilitado, febril, embrulhado num cobertor. Desdobram-se em cuidados de canja quente, de bolos saídos do forno, de fruta colhida no quintal. Dispõem-se ainda a acompanhar a uma ida ao médico. Volta a desenhada rotina, pois há que perceber que há ocasiões para se bater à porta.

2 (Largo)- Conhecimento de longa viagem de férias, pessoa afável e de interessante conversa. Vive num anónimo 7.º andar com letra (o prédio não se fica por ‘esquerdo’ e ‘direito’). «Não conheço ninguém por aqui, já cá moro há uns 5 anos»- confidencia num jantar oferecido aos conhecimentos de verão. Já há muito que por ali não vive, mas as coisas não terão mudado muito, ao longo dos tempos.

3 (Presto)- Prédio de vinte apartamentos, anterior morada a anteceder a fuga para o campo. Quatro horas da madrugada, tocam, com persistência, à campainha .Despertar súbito, pulsação descompassada «que desgraça anuncia o alarido?». Num repente, receia-se o pior. Voz desconhecida, pelo intercomunicador «é para abrir a porta, os nossos primos não têm como abrir a porta exterior, há uma avaria no trinco do apartamento». No dia seguinte, tentando evitar conflitos, bato à porta, a horas aceitáveis, voltando à situação inesperada, que não desejo ver repetida. À pessoal interpelação de as 4h da manhã não serem um momento conveniente, ouve-se, como num filme de Almodovar «não eram 4h, ainda faltavam quinze minutos!». Vizinhos: solidariedade, indiferença, estranheza […] (quem não tiver histórias com vizinhos, que levante o braço)


Lido  no blogue Rua dos dias que voam



O que é ser brasileiro, afinal? (Magali Moser)

Fotografia retirada do blogue do artigo  (v. link em baixo)


O que é ser brasileiro, afinal?

No Programa Provocações, da Tv Cultura, o apresentador Abujamra costuma repetir a pergunta para cada entrevistado: “você tem algum tipo de emoção patriótica ao ouvir o hino nacional?” A maioria dos entrevistados que assisti até hoje responde com um sonoro não. A pergunta sempre ecoou em mim. Agora, sete meses morando fora do meu país, começo a pensar ainda mais sobre brasilidade e nacionalismo. O que nos faz cidadãos brasileiros, afinal? O fato apenas de termos nascido em um determinado território, no mesmo espaço geográfico? Emocionar-se ouvindo o hino ou diante da bandeira nacional em cada 7 de setembro? Vibrar com uma vitória do país na Copa do Mundo? É possível ter uma identidade nacional diante das múltiplas identidades que coexistem na mesma nação?

Sempre tive interesse em saber como o Brasil é visto mundo afora. Aqui, separada por um oceano do lugar onde eu nasci e vivi a maior parte da vida, passo a entender melhor o que nos constitui enquanto brasileiros. Viver num outro país garante a possibilidade de questionar com mais veemência o que de fato constroi a identidade nacional, além de nos colocar em contato com outro modo de vida, novos hábitos, valores e permitir que olhemos de “fora para dentro” com mais criticidade. Samba, mulatas, futebol. O senso comum tem a imagem pronta do Brasil. Quando cheguei à Alemanha, lembro da surpresa de minha colega de WG, como são conhecidas as repúblicas aqui, sobre minha cor da pele: “Eu achei que você fosse mulata, estava esperando que tivesse a pele escura, como uma legítima brasileira”. Tentei não demonstrar meu incômodo com aquele comentário, mas ele ressoou dentro de mim por dias. O que é de fato ser brasileiro? De que forma somos vistos pelos estrangeiros? E as situações se repetiram de outras formas. Basta ser apresentada a novos amigos aqui, quando sabem minha nacionalidade, os comentários inevitáveis sempre aparecem: “se é brasileira então é boa de samba no pé”. E outros estereótipos que não valem a pena mencionar.

Mas também coleciono momentos de celebração da brasilidade em terras estrangeiras, e, posso assegurar, eles são muito mais! Um dos momentos mais felizes aqui na Europa foi a oportunidade de participar da nona edição do Festival de Filmes de Zurique, justamente no dia em que a programação era composta apenas por curtas brasileiros. Que maravilha poder contemplar aqui excelentes produções nacionais como Quinha e O ovo de dinossauro na sala de estar! Sem falar no excelente O Som ao Redor, que também foi atração do festival. Um outro momento especial aqui foi participar de uma manifestação em Colônia em apoio aos manifestantes brasileiros, no período em que explodiam os protestos no país. Juntar-se àquela multidão, mesmo à distância…

Mas se é para falar de brasilidade, o grande momento foi o encontro com os escritores brasileiros participantes da Feira do Livro de Frankfurt, justamente no ano em que o Brasil é homenageado. Foi uma noite linda, em Colônia! Participaram os escritores Daniel Galera, Andréa del Fuego, Beatriz Bracher, João Paulo Cuenca, Luiz Ruffato e Paulo Lins, sendo que não conhecia a obra da maioria deles, especialmente os da nova geração. Após a explanação, pude conversar pessoalmente com Paulo Lins e Luiz Ruffato. Os escritores evidenciaram a insatisfação com o momento atual pelo qual passa o Brasil. Lembraram da greve dos professores no Rio de Janeiro e da escandalosa reação da polícia. Falaram da ideia de fazer um manifesto público em apoio aos educadores, durante a Feira do Livro de Frankfurt.

Agora acabo de ler o discurso de abertura de Ruffato na Feira. E fiquei absolutamente emocionada pela sobriedade e lucidez. Reproduzo aqui o trecho final e mais belo, na minha opinião:

“Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.”

Em um país de dimensões continentais, construído por tantas crenças, culturas e costumes, marcado por fortes diferenças regionais e desigualdades, há uma identidade brasileira comum para todo cidadão? Afinal, o que significa ser brasileiro? Um país de diversas cores, formas, contrastes, hábitos, texturas, diversidade. Um povo multicultural. A mistura de todas essas características chega à brasilidade, esse mix de costumes. Darcy Ribeiro no clássico O povo Brasileiro já dizia: surgimos “da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos.” Por isso, chego à conclusão de que, para além de estereótipos, tipos físicos e culturais, pertencer a uma mesma nação é compartilhar a mesma cultura a fim de, como sugeriu Ruffato em seu discurso, tentar transformar o país num lugar melhor pra se viver.

Magali Moser


 (Lido no blogue Universo de Magali. Publicado a 9 de outubro de 2013)



segunda-feira, 24 de março de 2014

"Não tenhas a pretensão de ser inteiramente novo..." (Vergílio Ferreira)



"Não tenhas a pretensão de ser inteiramente novo no que pensares ou disseres. Quando nasceste já tudo estava em movimento e o que te importa, para seres novo, é embalares no andamento dos que vinham detrás."

Vergílio Ferreira


Pensar (1992)




sexta-feira, 21 de março de 2014

"Eu vinha de comprar fósforos..." (Almada Negreiros)

Fotografia de Danny Santos


Hoje, 21 de março, é o Dia Mundial da Poesia. Versos para este dia.



Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros (1893-1970)



segunda-feira, 17 de março de 2014

É a falta de cultura, estúpido! (Clara Ferreira Alves)


 Às vezes é bom ler crónicas do antigamente, nem que sejam dois anos escassos:

“É a falta de cultura, estúpido!” é uma crónica de Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso em julho de 2012.


É A FALTA DE CULTURA, ESTÚPIDO!

Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura, quase toda velha e sem sucessores.

Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente. Nós não somos muito diferentes disto. No meio do anedotário que converteria um homem mais inteligente num homem trágico, convém não esquecer o que nos separa, exactamente, do Relvas. Pouco. O dito não é um espécime isolado, um pobre diabo animado de força e disposição para fazer negócios e trepar na vida, que entrou em associações e cambalachos, comprou um curso superior e, de um modo geral, se auto-instituiu em conselheiro do rei. Já vimos isto.

Nunca vimos isto nesta escala, porque na 25ª hora da tragédia nacional, quando Portugal se confronta com a humilhação da venda dos bens preciosos (os famosos activos) aos colonizados de antanho e seus amigos chineses, o que o país tem para mostrar como elite é pouco. Nada distingue hoje a burguesia do proletariado. Consomem as mesmas revistas do coração, lêem a mesma má literatura (que passa por literatura), vêem a mesma televisão, comovem-se com as mesmas distracções. Uns são ricos, outros pobres.

A elite portuguesa nunca foi estelar, e entre a expulsão dos judeus e a perseguição aos jesuítas, dispersámos a inteligência e adoptámos uma apatia interrompida por acasos históricos que geraram alguns estrangeirados ou exilados cultos permanentemente amargos e desesperados com a pátria (Eça, Sena) e alguns heróis isolados ou desconhecidos (Pessoa, O′Neill).

Em “Memorial do Convento”, Saramago dá-nos um retrato da estupidez dos reis mas exalta romanticamente o povo. Todos os artistas comunistas o fizeram, num tempo em que o partido comunista tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe que, aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare. Cunhal traduzindo o “Rei Lear” de um lado, Relvas posando nas fotografias ao lado da bandeira do outro. Relvas nem personagem de Lobo Antunes, o descritor da tristeza pós-colonial, chega a ser. É um subproduto de telenovela. O tempo dos chefes cultos acabou, e se serve de consolação, não acabou apenas em Portugal.

A cultura de massas ganhou. No mundo pop, multimédia, inculto e narcisista, em que cada estúpido é o busto de si mesmo, a burguesia e o lúmpen distinguem-se na capacidade de fazer dinheiro. Acumular capital. O dinheiro, as discussões em volta do dinheiro acentuadas pela falta de dinheiro, fizeram do proletariado (e desse híbrido chamado classe média) uma massa informe de consumidores que votam. E que consomem democracia, os direitos fundamentais, como consomem televisão, pela imagem. Sócrates e o Armani, Passos Coelho e a voz de festival da canção. Nós, e quando digo nós digo o jornalismo na sua decadência e euforia suicidaria, criámos estas criaturas. Os Relvas, os Seguros, os Passos Coelhos, os amigos deles.

O jornalismo, aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culture em oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o ‘mercado’, tal como o jornalista, sujeito ao raring das audiências e dos comentários online.

A brigada iletrada, como lhe chama Martin Amis, venceu. Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, “Invictus”, conta que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram “Júlio César” ou “Macbeth”, “Hamlet” ou “Ricardo III” que os acompanharam. Não é um preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a história, tão importante como a física ou a álgebra. A grande mostra da Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos é Shakespeare (no British Museum) e não um dono de supermercados ou futebolista.

Os ‘heróis’ portugueses descrevem-nos. E descrevem a nossa ignorância Passos Coelho é fotografado à entrada do La Féria ou do casino. Um dono de supermercados ou um esperto ministro reformado são os reservatórios do pensamento nacional. Uma artista plástica é incensada não pela obra mas pela capacidade de “agradar ao mercado”, transformando-se, pela manifesta ausência de candidatos, em artista oficial do regime. É assim.

Não teria de ser assim. Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura quase toda velha e sem sucessores. Não estamos sós. Por esse mundo fora, a arte tornou-se cópia e reprodução (daí a predominância dos grandes copiadores de coisas, os chineses), tornou-se matéria tornou-se consumo. Como bem disse Vargas Llosa, em vez de discutirmos ideias discutimos comida. A gastronomia é uma nova filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de Cervantes e de Ortega Y Gasset.

Clara Ferreira Alves


(Expresso, 21 de Julho de 2012 )

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A cara e a coroa. A seguir, texto do blogue O insurgente publicado a 24 de julho do mesmo ano 2012:

Clara Ferreira Alves e a falta de cultura
Posted on Julho 24, 2012 by André Azevedo Alves

É a falta de cultura. Por António Araújo.

A autora de Pluma Caprichosa afirma textualmente que Cunhal, «aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare». Como é que Clara Ferreira Alves cometeu este erro de palmatória, uma calinada de dimensões tão monumentais? É, de facto, um lapso tremendo e lamentável. Mas erros, mesmo erros grosseiros como este, acontecem aos melhores. E Clara Ferreira Alves integra indiscutivelmente o grupo dos nossos melhores. Pertence, por mérito próprio, à escassa high culture portuguesa. Sendo brutal e colossal, o seu inacreditável equívoco em nada afecta a admiração que esta jornalista nos deve merecer. Em todo o caso, nós, os que a admiramos com sinceridade e até carinho, ficámos um pouco tristes com uma mancha cultural desta gravidade. Para mais, numa crónica que tem por título «É a falta de cultura, estúpido».


(Este é o último parágrafo do texto completo escrito por António Araújo no blogue  Malomil)





quinta-feira, 13 de março de 2014

Poema esquisito (Adélia Prado)




POEMA ESQUISITO

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

Adélia Prado


Nota. fia é pronúncia popular de filha.


segunda-feira, 10 de março de 2014

A ilusão brasileira (Nélida Piñon)

Vista da favela da Matinha, junto ao bairro da Tijuca, de classe média.
(Fotografia de Francesco Zizola)


Nota da Academia Brasileira das Letras:

A Acadêmica Nélida Piñon, ocupante da Cadeira nº 30 da Academia Brasileira de Letras, define a alma do Brasil em artigo publicado no jornal El Pais nas edições espanhola e brasileira. O título do artigo é “A ilusão brasileira”, e tem como subtítulo o seguinte texto: “Ibérica de raiz, mestiça, encantada pelo poder, heroica, marinheira, sensual, inclinada à intriga novelesca e à poesia, a alma do Brasil vive seu tempo mais iluminado”.

(Este artigo foi publicado a 8 de janeiro de 2014)



A ILUSÃO BRASILEIRA

O país onde se nasce enseja uma visão utópica. Não há isenção na hora de defini-lo. Abordo o Brasil com cuidados. Acerto e me equivoco. Mas pouco importa. Quem acertaria lidando com um país que ostenta tal magnitude, com um território que ao sobrevoá-lo corre-se o risco de se pensar no Caribe, mas ainda se está dentro de suas fronteiras. E que a despeito desta desmedida, não sofre turbulências linguísticas. Com o privilégio de ser mestiço. No corpo e na memória sincrética. Uma mestiçagem que vai além dos corpos, pois tingiu a alma e devora as entranhas da sua cultura, que é insidiosa e esplêndida, como deve ser.

O Brasil é um amálgama de todos seres e saberes. Entre tantas etnias, somos fundamentalmente ibéricos, filhos da imaginação portuguesa e espanhola. Herdeiros de um universo impregnado de ficção, do faz-de-conta, de peculiar noção de realidade. De uma realidade que, concebida como uma invenção pessoal, cada qual narra segundo seus desígnios. Propensos nós, por conta de uma vocação individualista, a opor-se aos projetos coletivos, às organizações sociais programadas para durar. Com exceção talvez da construção acelerada da capital Brasília, que corresponde às pirâmides do Egito.

O realismo átrio é pautado em geral por forte dose de fantasia. Assim, inventar como fantasiar fazem parte da índole social. Daí agradar-nos aparentar o que não somos, exibir o que nos falta, simular a posse de bens que não temos; pedimos emprestados ao vizinho. Como consequência, proclamamos, eufóricos, que somos amigos do rei, do presidente, comensal do prefeito da cidade. E para ostentar um valor que não temos, tiramos com facilidade do bolso do colete um nome famoso, insinuando intimidade com ele.

Esta dança de aparência e exibição há muito instalou-se entre nós. Somos cortesãos com gosto. O poder é o mel das nossas vidas. Originou-se de variadas etnias, mas especialmente da península ibérica, e prosperou na alma brasileira antes de existirmos como nação. Um comportamento social que nos leva a inquirir sobre a nossa gênese.

Até mesmo os intérpretes brasileiros, que se aventuraram a definir nossa índole brasileira, que tão bem espelha a nossa conduta pública e privada, não puderam assegurar-nos de que linhagem originamo-nos, e o que nos une e nos separa. Ou excursionar com as mãos apalpando o horizonte o que é puramente do âmbito do mistério. Ou mesmo dizerem com exatidão onde se resguarda a matriz do nosso ser. Dizerem por meio das vozes canônicas e populares o que significava ser brasileiro ao longo do século XIX ou não se reconhecer brasileiro nas turbulências do século XXI.

Acaso ser brasileiro, um desígnio que cobre o território nacional, do norte ao sul, portanto oito milhões de quilômetros quadrados, é simplesmente nascer dentro deste território, ou mesmo a beira do oceano Atlântico, já que somos donos das duzentas milhas marítimas? É nascer em um lugar molhado ou seco, que não se vê no mapa nem com lupa? Uma aldeia à margem da civilização, que a mãe, após parir o filho, inventou para assegurar-lhe que embora tivesse vindo ao mundo em um grotão era um brasileiro? Enquanto enchia-lhe a cabeça com devaneios, lendas, narrativas, afim de garantir-lhe certidão de nascimento e humanidade.

Ser brasileiro então é termos epiderme e alma mestiças, resultantes das andanças humanas pelo mundo? Apresentar-se às autoridades municiado do documentos onde está consignada a filiação? Como nome dos pais, data de nascimento, dados enfim que se incorporam a estatística e controlam a cidadania? De que etnia procede seu cabelo, se é fino, encrespado, enquanto o nariz tem narinas dilatadas, de origem bantu, e outros o apêndice curvado para indicar procedência semítica. Etnias que de nada servem aos brasileiros, vale mesmo é ser parte de todas as tribos, proclamar-se filho das andanças humanas pelo mundo.

Acaso ser brasileiro é ter idiossincrasias similares, paixões que se igualam, temperamentos que acenam com a mesma bandeira nacional onde está inscrito o dístico Ordem e Progresso? Nordestinos que padecem da sede e sulistas que se perdem nos pampas, tomando chimarrão como se fossem argentinos?

Narrativas astutas e mentirosas pautam a nossa história

É-se brasileiro pela língua que se fala no lar, na cama, na via pública? Independente do sotaque que cada região ostenta. Um anasalado, outro mais gutural, outro mais afunilado. Mas cada sotaque soando como música aos ouvidos de quem se emociona com a fragmentação das características. Uma língua vinda de Portugal há mais de quinhentos anos. E que se tornou a língua dos quebrantos, dos desejos eróticos, da eloquência parlamentar, dos sentimentos recônditos. A língua dos amantes e da poesia. Mas também dos guerreiros, dos corruptos que hoje são tantos no território nacional, sobretudo na capital do país, dos ditadores que foram expulsos a partir da implantação democrática em 1988, dos vândalos, dos supliciados de outrora e dos que ainda padecem nas mãos dos que têm poder. Também dos astuciosos, mentirosos, dos falsos donos das palavras, dos doutrinários inescrupulosos que nos tempos atuais, da tribuna da capital, nos ludibriam a pretexto de nos servir. A língua dos vencedores, dos pecadores. Dos que pedem perdão sabendo que incorrerão de novo na mesma culpa.

Há tantas maneiras de ser brasileiro. É rir confrontado com o ridículo que atribuímos ao vizinho como causador da situação constrangedora. Rir para que apreciem o nosso humor. É chorar quando a dor é pública e o nosso pranto prova a excelência do nosso caráter, como somos sensíveis diante da dor alheia. É abraçar quem sofre como se a manifestação de pesar assegurasse ao outro que seríamos eternamente solidários.

Ser brasileiro é dilacerar as cordas vocais na hora do gol, como modo de levarmos a ilusão para casa e com ela enfrentar a semana entrante a despeito do transporte, das dívidas que se acumulam, da educação precária dos filhos, da moradia que um temporal derruba matando dois ou três familiares. É beber a cerveja que o vulgo e a emoção chamam de loura gelada, como se estivessem se referindo quem sabe à loira Marilyn Monroe, criando com a garrafa um vínculo erótico. De forma que busquemos similitudes em torno da mesa e transfiramos para mais tarde as divergências que nos apartem. Já que convém esquecer que são escassos os recursos que nos une. É dizer piadas que atraiam a plateia de vizinhos, tendo como sujeito da nossa crueldade alguém que era necessário castigar. Um gay, por exemplo, um travesti, uma prostituta. Não há piedade em qualquer nação.

Aparentamos, então, ser cervantinos, somos brasileiros como quando abraçamos quem está próximo, o vizinho na hora do gol que decide a partida, fortalecidos pela esperança de vencer os embates da semana entrante. Como quando, emotivos e vulgares, sorvemos a cerveja que cristaliza similitudes em torno da mesa e transfere para o futuro as divergências que ora nos apartam.

Ser brasileiro é aceitar o mistério, convencido de que sendo Deus brasileiro, cabe-lhe solucionar os nossos conflitos. É saber que o Brasil é nossa morada e alojamento dos nossos mortos, e que nada nos faltará. Nem teto, nem a sopa fumegante. A vida supre-nos com sol, sal, alegria e a esperança dos dias vindouros.

Afinal, nos trópicos brasileiros as colheitas se multiplicam como nas bodas de Canaã. É a terra que Pero Vaz de Caminha, em 1500, assegurou ao rei Dom Manuel, em Lisboa, que aqui o que se plantasse, vingaria. Assim nasceram as bananas da infância junto com o fausto do verbo da língua lusa portuguesa. Para nós, cidadãos, é uma espécie de paraíso que bonifica a memória tanto com lembranças como com o esquecimento. Pois temos a propriedade de esquecer o que convém apagar. Também a transcendência, a despeito dos cultos sincréticos, e Deus estar em todos os lugares, não prospera e o enigma não é respeitado. Não há, pois, vocação filosófica, como os alemães. E por conta da força da intriga e da iminência da metáfora, somos voltados para a ficção e para a poesia.

A memória, contudo, que os brasileiros cultivam, corresponde à matéria que guardamos do mundo. Como consequência, para sermos brasileiro, somos gregos, romanos, árabes, hebreus, africanos, orientais. Somos parte essencial das civilizações que aportaram nesta terra onde afloram a abundância, a alegria, a traição, a ingenuidade, o triunfo do bem e do mal, a ilusão, a melancolia. Atributos todos nutridos pelo feijão preto bem temperado, o arroz soltinho, o bolo de fubá, o bife acebolado, e os anjos feitos de açúcar e gema de ovo que enfeitam a paisagem atlântica e sertaneja.

No Brasil, ao longo dos séculos, surgiram narrativas astutas e mentirosas que pautam a nossa história. Heróis e malfeitores, de estirpes emaranhadas. Outrora abominados, hoje reverenciados. Quem se interessa pelo julgamento da história? Mas personagens afinados com as torpezas e as inquietudes do seu tempo. Acomodados à sombra da mangueira que resiste aos anos, enquanto dedilhavam as cordas do violão e do coração.

Berço de heróis e marinheiros, neste litoral os saveiros da imaginação cruzaram os mares, instalaram culturas feitas das sobras alheias. Quem aqui nasceu, ou aqui aportou, fincou no peito brasileiro bandeiras, hábitos, linguagem, loucas demências.

É necessário, portanto, que ao viajar para o Brasil, o estrangeiro se apresse em dominar sua história, suas leis que, conquanto promulgadas, dão margem a interpretações múltiplas, coteje se o tema do seu interesse se harmoniza entre os diversos poderes públicos de Brasília. Se de verdade é o paraíso fiscal em que sonhou investir seu capital volátil, uma pretensão que contraria nossos interesses associados ao real desenvolvimento econômico do país. Sobretudo convém auscultar os sentimentos do brasileiro, sua simpatia, sua astúcia, a vocação com que altera as regras da vida e do mercado econômico. De como no meio de qualquer processo altera leis e diretrizes. De como ganha um tempo que, para o investidor, constitui um prejuízo, mesmo que as autoridades não saibam o que fazer com o tempo que guardou. Convém, sim, sondar o coração do brasileiro, que se reparte entre a família e os amores clandestinos, através da leitura dos intérpretes da pátria, dos ficcionistas, dos poetas. Deles emana a leitura que lhes dará o detalhe, a medida, as substâncias do ser brasileiro. A exegeses que vai fundo a genealogia dos afetos. Que tentou chegar perto deste coração brasileiro. Talvez se deslumbre com este povo singular, que trata o cotidiano com admirável leveza. E que a despeito de carnavalizar a realidade, também ostenta sintomas de melancolia.

É necessário saber e levar em conta, diariamente, de que nasceu no Rio de Janeiro em 1828, durante o Segundo Reinado, o escritor Machado de Assis, com nome de batismo Joaquim, cujo determinismo falhou ao não prever a própria grandeza. E de cuja obra surge o verbo que nos define e concede à nação um destino solar e a alvorada de cada dia.

Amigos, sejam todos bem-vindos a esta terra amada.

Nélida Piñon 


Site oficial de Nélida Piñon






quarta-feira, 5 de março de 2014

Adeus (Eugénio de Andrade)



ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus


Eugénio de Andrade