sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O Natal da Minha Mãe (João Miguel Fernandes Jorge)

Fotografia de Enric Vives Rubio (Público)


O NATAL DA MINHA MÃE

A abstracção não precisa de mãe nem pai
nem tão pouco de tão tolo infante

mas o natal de minha mãe é ainda o meu natal
com restos de Beira Alta

ano após ano via surgir figura nova nesse
presépio de vaca burro banda de música

ribeiro com patos farrapos de algodão muito
musgo percorrido por ovelhas e pastores

multidão de gente judaizante estremenha pela
mão de meu pai descendo de montes contando

moedas azenhas movendo água levada pela estrela
de Belém

um galo bate as asas um frade está de acordo
com a nossa circuncisão galinhas debicam milho

de mistura com um porco a que minha avó juntava
sempre um gato para dar sorte era preto

assim íamos todos naquela figuração animada
até ao dia de Reis aí estão

um de joelhos outro em pé
e o rei preto vinha sentado no

camelo. Era o mais bonito.
depois eram filhoses o acordar de prenda no

sapato tudo tão real como o abrir das lojas no dia
de feira

e eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que
tinha um cavalo debaixo do quarto

subindo de vales descendo de montes
acompanhando a banda do carvalhal com ferrinhos

e roucas trompas o meu Natal é ainda o Natal de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.

João Miguel Fernandes Jorge


Actus Tragicus (1979)





quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Natal... Na província neva (Fernando Pessoa e Luís Filipe Castro Mendes)

Fotografia de Nuno Martins



Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa


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Natal… Na Província Neva

Recordação de neve na cidade:
às vezes os meus dedos procuravam
um conforto de infância ameaçada.

Nos bolsos esgarçados o cotão,
os restos de ternura nunca dada:
sempre se me fez longe o coração.

E o consolo perfeito, sem idade,
das coisas que há por dentro da lembrança;
recordação de neve na cidade:
foi antes do terror, da esperança.

Seja sempre quem sou esta distância
que muda em mim as coisas conseguidas
em dedos que procuram da infância
cotão, ternura, restos de outras vidas.

Luís Filipe Castro Mendes


Luís Filipe Carrilho de Castro Mendes (1950) é um diplomata, escritor, poeta, ficcionista e político português. Foi ministro da Cultura do XXI Governo Constitucional de Portugal de abril de 2016 a outubro de 2018.



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Manifesto pelo direito de não gostar do natal (Ruth Manus)



Manifesto pelo direito de não gostar do natal

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes. 


Já ouvi gente dizer que não gosta de cerveja. Ouvi outros dizerem que não gostam de conviver com crianças. Ou que não gostam de praia. De Game of Thrones. De Carlos Drummond de Andrade. De bacon.

Para mim, qualquer uma dessas pessoas não está no seu juízo perfeito. Não acho minimamente normal alguém não gostar dessas maravilhas. Mas quando as ouvi dizer essas aberrações, o máximo que fiz foi dizer “Jura? Tem certeza? Que coisa.”. Não as condenei, nem passei horas tentando lhes dizer que eles estavam errados. Aliás, eu detesto esse tipo de persuasão.

Mas parece haver uma frase proibida, uma frase terrível, que jamais deve ser dita por qualquer ser humano: “eu não gosto de natal”. Dizer que não gosta de natal soa como dizer que não gosta da própria família, que não gosta de comida boa, que não gosta de ganhar presentes ou que não gosta de Jesus Cristo. Nada poderia ser mais terrível do que isso.

Na verdade, uma coisa não tem nada a ver com outra. Eu sou maluca de amores pela minha família. Adoro comida boa e presentes. Tenho um baita respeito pela história de Jesus. Mas eu detesto o natal. Simples assim. Poderia ser diferente, se o natal fosse realmente como deveria ser. Mas do jeito que é, eu simplesmente não consigo gostar dessa data.

Tudo começa com essa dinâmica doentia dos presentes. Como eu mencionei no ano passado, acho que nada pode ser mais antagônico com a memória de Jesus Cristo do que os shopping centers lotados, as brigas por vagas de estacionamentos, as crianças fazendo longas listas de presentes, a insanidade das compras e o tormento dos pacotes. Nada disso faz qualquer sentido.

Soma-se a isso o tormento da logística. Começam conversas entre os casais que são do tipo “passamos o 24 com a sua família e os 25 com a minha-? mas ano passada não foi o 25 com a sua?- temos que trocar esse ano?- sim, porque meu irmão vai vir de Macau- mas ele vai passar o 24 com a família da sogra dele ou com a sua?- não sei, preciso ver- ok, mas e se levássemos seus pais na festa da minha família?- mas o que eu faço com a minha irmã?- fala para ela ir- com as crianças? eles são 6- verdade, não cabe- então?- e agora?- não sei- não sei”.

Tudo é coroado pelos excessos. Excesso de comida, excesso de programas, excesso de gente, excesso de trânsito, excesso de embalagens, excesso de músicas natalinas. O natal deveria ser algo simples, por uma questão de lógica e não essa insanidade da fartura generalizada.

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes, do que nessa estrutura caótica. Honestamente, não consigo gostar desse natal. Gosto das pessoas, não gosto da dinâmica.

No fim das contas, acho que tem muita gente que acaba fazendo uma certa contagem regressiva para que janeiro chegue logo e que tudo isso já tenha passado. Desculpem o mau jeito, mas eu não gosto do natal. Pelo menos não desse natal. E, no fundo, acho que muita gente que pensa da mesma forma. Só que não fica bem dizer isso, né? Paciência. Agora, já disse. Feliz natal a todos.

Ruth Manus 


Publicado em Observador (23-12-2017)




sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um canto caipira

Fotografia de Fabiano Caetano



Eu vou, eu vou
lá pra onde a lua vai,
só que a lua vai e vorta,
eu vou e não vorto mais!






Nota. Caipira é um termo de origem tupi que designa, desde os tempos coloniais brasileiros, os moradores da roça. A designação alcançou, sobretudo, populações da antiga capitania de São Vicente (posteriormente capitania de São Paulo) que hoje são os estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Rondônia. O termo "caipira", no entanto, costuma ser utilizado com mais frequência para se referir à população do interior dos estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais. Corresponde, em Minas Gerais, ao capiau (palavra que também significa "cortador de mato"), na região Nordeste, matuto, e na região Norte (Pará) caboco (termo derivado da palavra caboclo, mas que perdeu seu sentido original).



"Lá no Faial me dão cartas..."

Ponta da Espalamanca - Ilha do Faial, Açores
(Fotografia de Paulo H. Silva)



Lá no Faial me dão cartas,
no Pico me dão amores.
Adeus Faial da minha alma,
meu ramalhete de flores.

Poesia popular in Património Popular Português (recolha de Helder Pacheco)




segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Medo da Eternidade (Clarice Lispector)

Fotografia de Nicole Novak




Medo da Eternidade

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

Clarice Lispector 
 
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Medo da Eternidade é uma crônica escrita por Clarice Lispector, e pode-se dizer que é uma reflexão a respeito de um dos maiores medos humanos, que é a morte, a eternidade. Muitas pessoas não gostam de conversar a respeito ou sentem medo por não saberem ao certo o que lhes espera após esta vida. Clarice faz com que o leitor reflita a respeito da eternidade, algo incompreensível para a mentalidade finita do ser humano.

A crônica trata a eternidade de uma maneira bem simples, talvez até simplória, comparando-a a um “chicle”, uma bala que, segundo a história, não acaba nunca. O encanto da história se dá no fato de que é contada sob o olhar de uma criança, que descreve seus pensamentos e sentimentos ao experimentar aquele chicle que não acaba nunca. A inocência e pequenez da criança diante de um mistério tão grande como este é uma alusão à pequenez e ingenuidade do ser humano diante do mistério da eternidade, incompreensível a mentes tão limitadas.

A menina é apresentada ao tal “chicle” pela sua irmã, que lhe presenteia com um e lhe dá as instruções de como ela deve proceder, tomando cuidado para não perdê-lo, pois seria a única forma de não permanecer com ele eternamente. Primeiramente a menina se assusta com tal engenhosidade, envolvida pela ideia de uma bala que duraria para sempre. Ao mastigá-la, porém, a criança se sente desconfortável, nervosa, e faz uma reflexão altamente adulta dizendo que não é capaz de suportar o peso da eternidade, e que não está à altura da eternidade. Para resolver o problema, a menina finge que deixou cair o chicle no chão sem querer, e após dar as explicações à sua irmã, se sente aliviada por não ter mais que carregar o peso da eternidade consigo.

Se trata de uma crônica típica, que utiliza uma situação cotidiana para abordar um tema reflexivo. Ao analisar a situação, o leitor é levado para dentro da mente da menina, vendo seu espanto e estranhamento diante de algo novo e desconhecido, e a partir daí compara a situação vivida por ela consigo mesmo. No início da história a personagem parece ser inocente, mas ao longo desta vai mudando, a ponto de, ao final, tomar a atitude de ignorar a eternidade, por se enxergar incapaz de lidar com ela. A crônica ressalta a fragilidade humana e leva à reflexão. A personagem tem profundidade psicológica que é revelada a partir dos pensamentos que são relatados na história.

A narração é contada em primeira pessoa (narrador-personagem), semelhante a um relato de memórias, já que a pessoa que viveu a história não é mais criança quando faz o relato. A visão é unilateral e subjetiva, limitando-se as percepções da personagem que conta a história. O tempo se dá com base no espaço que é o caminho entre a sua casa e a escola, porém a certo ponto da narrativa o tempo deixa de ser cronológico e passa a ser psicológico, pois a personagem se detém em descrever seus pensamentos e sentimentos.

Ana Paulo Araujo
(infoescola.com)



Clarice Lispector no doodle do Google




Clarice Lispector é homenageada por doodle do Google

Escritora completaria 98 anos nesta segunda-feira (10). Ilustração foi feita pela designer Mariana Valente, neta de Clarice.

Clarice Lispector é a homenageada do dia pelo doodle do Google. A escritora completaria 98 anos nesta segunda-feira (10). Para marcar a data, Clarice ganhou uma ilustração especial acima da caixa de buscas da ferramenta. Na imagem, o rosto de Clarice aparece entre livros e imagens que remetem tanto o Brasil, para onde migrou com a família aos dois anos de idade, quanto a Ucrânia, onde nasceu em 1920.

A ilustração foi feita pela designer Mariana Valente, neta de Clarice. Segundo ela, o processo de criação foi manual e começou com uma busca pelo acervo fotográfico da família.

“Digitalizei algumas imagens e texturas e tive a ideia de mostrar ela saindo com a família lá da Ucrânia e chegando ao Brasil, começando a trabalhar como jornalista, e depois se direcionando para o próprio trabalho de escrita”, contou.

Continua em Globo.

Fotografia de José Castello


Também em Globo:

Clarice Lispector: mais de 40 anos após morte, escritora desperta mais questões do que quando viva

Embora tenha recebido reconhecimento ainda em vida, a obra visceral da autora, segue pautando debates acadêmicos. Seria ela uma feminista? Um autora de olhar estrangeiro sobre o país? Talvez sim, mas ela recusaria qualquer rótulo.



O genocídio laboral de toda uma geração (Isabela Figueiredo)



O GENOCÍDIO LABORAL DE TODA UMA GERAÇÃO

A maior parte dos trabalhadores por conta própria ou de outrem, com carreiras bem sucedidas, e rendimento líquido satisfatório ou bom sonha com a idade da reforma. A reforma configura-se como uma época de ouro na qual poderemos ser livres e realizar os nossos sonhos de leitura, viagens, e fazer aquilo de que realmente gostamos.

E a pergunta impõe-se: passamos as décadas da nossa juventude e vida ativa fazendo aquilo de que não gostamos? Vivemos contrariados para conseguir viver com conforto? Resposta: na maior parte dos casos, sim! Há muito poucos capazes de escapar a esta sina: os que encaram a sua carreira como uma missão ou uma arte: artistas, naturalmente, e professores, médicos e outras profissões carregadas de oportunidades de altruísmo. Interessam-me particularmente os primeiros, por serem um exemplo evidente e reconhecido deste tipo de percurso. A Paula Rego continua a pintar, o Lobo Antunes a escrever, o Leonard Cohen e o Manuel de Oliveira caminharam até ao último suspiro. Os artistas param quando a doença os impede, o que me leva a pensar que não encaram o trabalho como trabalho. Ou seja, o trabalho não existe em oposição à vida. Ele e a vida formam uma amálgama que se funde e completa a cada momento. Para os artistas o lazer faz parte do processo de labor e o momento de trabalho, sendo seriíssimo, é vivido com o prazer do lazer. Uma reforma que correspondesse a uma retirada de atividade corresponderia, para eles, a uma anulação da sua vitalidade, pensamento e criatividade. Ser-lhes-ia insuportável.

Se compararmos o exemplo artístico de envolvimento entre labor e lazer com a nossa própria experiência percebemos que algo está errado com a forma como trabalhamos. Se desejamos que termine porque nos está a destruir, não trabalhamos de forma correta nem saudável. Provavelmente o que está mais profundamente errado no sistema laboral tradicional prende-se com a exigência de elevadíssima produtividade. Esta não é amiga da perfeição porque não respeita o amadurecimento das ideias nem o resultado do processo laboral. Precisamos de trabalhar mais lentamente, com menos pressão, para que o trabalho não nos transforme numa bigorna do mercado.

No outro dia li na Imprensa que dos jovens trabalhadores recentemente entrados para o mercado de trabalho se exige que sejam capazes de trabalhar sob grande pressão, argumentado que esse tipo de exercício desenvolve as capacidades de raciocínio. Esbocei um sorriso cínico e doído. As organizações económicas e sociais sabem produzir os discursos que melhor servem os seus objetivos. Os discursos funcionam porque as ideias muito repetidas tornam-se verdades para quem ouve, sem tempo para pensar nas consequências, quanto mais nas origens, mas uma verdade-falsa nunca passará de uma mentira, por vezes de um crime de genocídio de toda uma geração.

Isabela Figueiredo


Publicado no seu blogue Novo Mundo (29 de março de 2017)




quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde" (Germano Almeida)




"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde"

"Eu quero contribuir para as pessoas tomarem consciência que a lingua portuguesa é tanto vossa como nossa. Temos de assumir como património nosso que temos de valorizar e de vender".

Germano Almeida, escritor cabo-verdiano galardoado com o Prémio Camões este ano, cresceu numa casa onde o pai falava em português e a mãe falava crioulo. Mas não encontra essa facilidade de expressão nas duas línguas, que sempre teve na sua família, no seu país natal."A sociedade cabo Verdiana decorre em crioulo". O escritor esperava que o surto do crioulo abrandasse após a independência mas tal não aconteceu. Por isso diz que a língua portuguesa está em risco em Cabo Verde mas que há consciência do perigo. "O português já está a ser ensinado nas escolas como língua segunda".

Sobre o seu último livro "O Fiel Defunto", mais uma história contada com humor em torno dos costumes das ilhas, o personagem do escritor que é assassinado, Miguel Lopes Macieira, é inspirado nele próprio. "Pensei em mim próprio, se não brinco comigo não tenho o direito de brincar com os outros".

Como foi celebrado o prémio Camões em Cabo Verde, nas ilhas, como foi a festa?

Muito bem, eu próprio fiquei admirado com a maneira como as pessoas em geral receberam o prémio. Porque nós cabo-verdianos temos essa mania: tudo o que de bom acontece a um cabo-verdiano acontece a Cabo Verde. As pessoas fartaram-se de cumprimentar dizendo: "o dinheiro pode ser para ti mas o prémio é nosso".

É muito lido em Cabo Verde, também pelos jovens ou é mais lido fora de Cabo Verde?

Sou bastante lido em Cabo Verde também e nem sempre tão vendido como sou lido porque em Cabo Verde há muito a tradição de troca de livros, empréstimos, alguém compra um livro, acaba de ler, empresta a outra pessoa e o livro vai passando d mão em mão e às vezes esquece-se de quem é o livro. O livro tem valor em si mas não tem, digamos, um valor económico. Eu vejo isto pela quantidade de jovens que falam comigo mas acho interessante que quando me perguntam:"Você é Germano Almeida?"Sou". "Ah, pensei que fosse morto". Mas porquê,? claro que estão a falar em crioulo e eu estou a traduzir em português. "Eu estudei no liceu e li os seus livros na escola. Pensavam que eu era colega do Baltasar [Lopes da Silva], do Aurélio Gonçalves e companhia, que são os doutores que eles estudam no liceu.

E eles quando falam consigo, os jovens, as pessoas das ilhas, falam sobretudo em crioulo?

A língua, a vida em Cabo Verde decorre em crioulo

Está-se a perder a língua portuguesa ou não há esse risco?

Há. Antes da independência era praticamente proibido falar crioulo. No liceu não se podia falar crioulo e mesmo na vida comum desencorajava-se. Bem, com a independência houve um surto de crioulo, todo o mundo já falava crioulo. Eu sinceramente esperava que abrandasse. Não, não abrandou, antes pelo contrário intensificou-se. Eu vejo pela minha filha que vai fazer agora 30 anos, cresceu numa casa onde se fala crioulo, tanto eu como a minha mulher falamos pouco crioulo, falamos crioulo obviamente, mas ela com a empregada e com os vizinhos fala sempre crioulo. E nós nunca tentamos impedir que falasse a língua que quisesse falar por uma razão muito simples: eu tenho a experiência pessoal da minha família. O facto de o meu pai falar sempre português e a minha mãe falar sempre o crioulo, nunca nos terem imposto falar uma ou outra língua, permitiu que desenvolvessemos livremente. Eu digo isto porque parentes meus que foram obrigados a falar português ficaram a odiar a língua. Mas há muitas famílias que nunca ouviram ou não estavam habituadas a ouvir falar o português. E Cabo Verde não é de facto uma sociedade bilingue.Nos últimos tempos, nos anos seguintes à independência, começou-se a sentir de facto essa fraqueza dos alunos cabo-verdianos em sair para ir estudar para o exterior, não dominando a língua em que tinham de estudar obtinham péssimos resultados. Isto durou alguns anos. Por exemplo, para nós, começámos a sentir que era uma vergonha nacional quando o Brasil começou a exigir, antes de aceitar dar bolsas, que os alunos prestassem uma prova de domínio da língua portuguesa., quer dizer, isto em Cabo Verde para nós é absurdo. Neste momento já se tomou consciência que é um risco grande que estávamos a correr e já se começou a ensinar o português como língua segunda, isto é, desde a escola as pessoas aprendem o português.

Como língua estrangeira?

Eu estou a dizer segunda porque quando defendi isto num artigo de jornal, a necessidade de ensinar o português como língua estrangeira, as pessoas caíram sobre mim: "Não é língua estrangeira que se diz". Eu quero lá saber, eu quero saber é que não é nossa, seja segunda ou estrangeira. Mas parece que a regra que se diz é língua segunda e não estrangeira. Eu penso que o que é necessário é efetivamente tomarmos consciência da importância que a língua portuguesa tem para nós. Não é saudosismo, é um instrumento de trabalho importantíssimo. Amílcar Cabral já dizia que a língua portuguesa foi a maior herança que os portugueses nos deixaram e é verdade. Uma vez numa entrevista aqui em Portugal permiti-me dizer "bom, com o crioulo não vamos longe". As pessoas caíram sobre mim, atacaram-me ferozmente. Quero contribuir para as pessoas tomarem consciência de que a língua portuguesa é tanto vossa como nossa.

Plataforma
(03.07.2018)
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Comentário de Raymond Halles, como resposta a esta entrevista em Plataforma:

 Ô môss! Um tá podê dzêb um c’zinha? Não entendo como é que a vida em Cabo Verde se processa em criolo e tenho grande dificuldade em acompanhar essa afirmação. O criolo na variante do sotavento é tão diferente da de barlavento e ainda se tem de contar com a variante de Santo Antão. Como é que é possível sequer pensar que se pode unificar estas variantes numa só? O Português era e de certa forma continua a ser a língua veicular do território. Aliás se antes da independência era a língua do Liceu (primeiro o Gil Eanes, de boa memória e mais tarde o Liceu da Praia) era porque no Mindelo se encontravam alunos desde Santo Antão à Brava e era necessário não só que estes alunos tivessem o mesmo grau de formação mas também que formassem entre si uma verdadeira comunidade escolar. Não por acaso muita literatura criola foi escrita em Português e que alguns dos seus criadores estiveram intimamente ligados ao Liceu, como o Baltazar Lopes da Silva ou o Roque Gonçalves, isto já para não fale nos Claridosos, Manuel Lopes, etc.

O Português não será assim língua estrangeira, como é óbvio, não é segunda língua, no sentido em que é uma lingua de menor uso, mas uma língua veicular, aquela que nos permite entender em todas as ilhas sem engulhos semânticos, gramaticais ou lexicais, e assim deveria continuar. Juntamente com a valorização das diferentes variantes do criolo, que a tentativa de normalização pelo criolo do sotovento está a matar e que ainda por cima é uma normalização destinada ao fracasso. Ainda há dias vindo da Baía das Gatas para o Mindelo o meu jovem condutor me dizia que por vezes trazendo pessoas de Santiago ou do Fogo utiliza o Português para melhor se entenderem do que cada um na sua variante do criolo. Penso que este facto é bem demonstrativo de que não foi a colonização que tornou o Português veicular (através do ensino e da administração) mas que a sua qualidade de língua veicular foi uma emergência derivada da necessidade de um entendimento comum. Mantenha!



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Piropo (Miguel Esteves Cardoso)

Fotografia de Celeste Romero


PIROPO

A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante. Hoje em dia, porém, os rapazes de Portugal já não correm atrás das raparigas – andam com elas. A diferença entre «correr atrás» e «andar com» é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria, entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os 400 metros barreiras.

Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o cool da contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “'Bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e boçal “Bute?”. “Bute” significa qualquer coisa como «Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas». Mas, como os rapazes só dizem «Bute?», são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e de enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um «Bute» terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?

Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer «Ai, Lena... quando ele disse "Bute" subiu-me o coração à boca!». A verdade é que o coração é um órgão bastante preguiçoso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso.

De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente «Bute» – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.

Miguel Esteves Cardoso

Fragmento de "Piropo", in A Causa das Coisas, Assírio e Alvim


sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Canção do ano 86 (Fernando Assis Pacheco)

Robert Grant: Ponte de Santa Clara, em Coimbra



Outro Fernando, Fernando Assis Pacheco, morreu no dia 30 de novembro de 1995.


″CANÇÃO DO ANO 86″

Agora quando volto
quando é raro voltar e sempre por um dia
estou à minha espera na ponte de Santa Clara
com um ramo de rosas que levanto
à aproximação do carro
saudando-te caro Fernando Assis Pacheco
filho pródigo destes quintais floridos
quando acontece que volto
que assim volto por pouquíssimo tempo dou comigo
na berma da EN 1 a olhar à esquerda o Vale do Inferno
hoje estragado por um sacana qualquer dum engenheiro
dizendo adeus adeus Fernando Assis Pacheco
menino antigamente sem cuidado

se é que volto intimado pela agenda
do jornal em Condeixa já inquieto espreito
a ver se vens do lado de Pombal
oitavo duma fila atrás do camião
coçando a barba gesto bem teu
com que disfarças o nervoso e a pressa

volto sem querer quando decerto
mais não queria voltar
encasacado anónimo de olho circunvago
Leiria num relance prego no fundo
apetecia parar ao pé de ti Fernando Assis Pacheco
cálido aceno do que morreu
conversamos os dois sobre esse século esses
cafés com quatro mesas e matraquilhos na cave a cheirar a bolor
essas aulas a que faltávamos no último período para empatar cinco
a cinco com os varões todos torcidos

consta que desde então
não fazes mais do que perder

Fernando Assis Pacheco


Aqui podemos ver um vídeo da RTP com este poema.




Quando era jovem eu a mim dizia... (Fernando Pessoa)



Fernando Pessoa morreu em Lisboa no dia 30 de novembro de 1935.


Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.



1921

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990)


(Arquivo Pessoa)



terça-feira, 27 de novembro de 2018

África com kapa? (Mia Couto)




ÁFRICA COM KAPA?

– Escreve-se com kapa e dabliú?
O brasileiro não entendeu.
– Como?
O meu amigo sorriu benevolente. Puxou a barriga para cima do cinto e dispôs-se a ajudar o funcionário da migração a preencher nossos papéis de entrada. Pegou na caneta e escreveu o nome, recheado de “k”, “w” e “y”.
O anfitrião brasileiro franziu o sobreolho. Remirou as fichas e, certamente, ressentiu-se de o terem corrigido. Ele tinha escrito o nome do meu compatriota, empregando as normas ortográficas da língua portuguesa. Usou as letras “c”, “u” e “i” onde o meu amigo insistia em emendar para kapa, dabliú e ipslon.
– Não percebo por que escreve assim – teimou o funcionário.
Temi que o meu companheiro de viagem puxasse de resposta arrogante. Mas ele praticou a sua gorda paciência.
– Porque assim é que é a maneira africana de escrever.
E antes que o recepcionista retomasse o fôlego para mais pergunta, o moçambicano adiantou basta filosofia. Foi um discurso. Ali mesmo, entre malas e empurrões, pronunciou-se: era urgente romper com as imposições ortográficas da língua dos colonizadores. A revolução, exclamou ele, é para isso mesmo, para romper espartilhos. Uma dama que passava escutou a sentença e, desconfiada, apressou-se a sair dali. O meu compatriota continuava, inflamado.
– Temos que assumir as nossas raízes africanas, respeitar as nossas tradições.
Aqui o brasileiro conseguiu interromper.
– Será que os kapas são mais africanos que os cês?
Era uma pergunta, sim senhor. Afinal o brasileiro estava de espertezas. E discutiram-se os dois, divergentes. Eu não emiti opinião: não queria que se fizesse trivergência. Nem fica bem entrar num país com pé na controvérsia. Mas os dois prosseguiam a questão que se colocava. O brasileiro despachava argumento atrás de argumento. Dizia que, para ele, se tratava de pura transferência das normas do português para as do inglês.
– Você sai da sombra da mangueira para entrar na sombra do abacateiro, moço.
O moçambicano ficou embaraçado, descontou no discurso a demora de um raciocínio à altura. Mas não contra-atacou directo. Preferiu uma incursão no flanco do adversário.
– E sabe que mais, meu caro? Há muita revolução por aí que se distraiu na dignificação da personalidade.
O brasileiro solicitou explicação. Então o Gorbatchov ainda não tinha rompido com o alfabeto de S. Cirilo? E Fidel de Castro, tão consequente em tudo, mantinha-se agarrado a padrões instituídos pela monarquia espanhola? E ambos se alfabatiam.
Atrás de nós já uma considerável bicha de pessoas se impacientava. Alguns comentavam: parece que é gente ligada a esse negócio de Acordo Ortográfico. Uma voz se ergueu nervosa:
– E será que vão assinar o acordo aqui, no balcão do aeroporto?
Os dois contendedores resolveram adiar o despacho final da querela. O funcionário pegou então nos meus papéis e disse, levantando o rosto em desafio:
– Pronto, também emendo o seu. Mas é só por esta vez, viu?
E com gesto enérgico, riscou a ficha. No formulário, em letras garrafais, escreveu: MYA KOWTO.

Mia Couto


Cronicando. Caminho (1991)



segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A jangada de pedra (José Saramago)




Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenétis Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde, bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho, para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se, nunca tinham ladrado. Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.

José Saramago

A Jangada de Pedra (1988). Este é o início do romance.




sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Adeus, futuro: "copy-paste" (Maria do Rosário Pedreira)



Adeus, futuro: "copy-paste"

Trabalhei alguns anos numa editora que, além de publicar livros para o mercado tradicional, produzia, para vender nos quiosques, obras enciclopédicas em pequenos volumes ou fascículos, escritas por uma equipa de jornalistas recém-licenciados. Um dia, o director pediu a uma das raparigas que lhe redigisse com rapidez um verbete de 15 linhas sobre João de Deus, urgência à qual ela correspondeu sem qualquer problema. Porém, quando o director foi ler o texto, era sobre o apóstolo favorito de Jesus... A autora explicou que fora ao Google e São João lhe aparecera no topo das opções. Depois fizera copy-paste e... asneira.

Além da ignorância generalizada (e às vezes arrogante, o que é mais perigoso, porque a vergonha de não saber sempre levou as pessoas a procurarem informação), hoje muitos dos jovens não sabem, pura e simplesmente, pesquisar: não entram numa biblioteca e, se abrirem um livro ou dois, já é uma sorte. Está aí para quem a queira consultar a maravilhosa Wikipédia e portanto, mesmo sabendo que o que circula na internet nem sempre é fiável, para quê levantar o rabo da cadeira? E o pior é que as escolas também não ensinam os alunos a desconfiar e a comparar informações, aceitando inclusivamente os seus trabalhos cuspidos de uma impressora em vez de manuscritos (e, assim, como ter a certeza de que foram eles a fazê-los?).

Conta numa entrevista a escritora Alice Vieira (que já correu as escolas do país a falar dos seus livros) que uma professora lhe pediu que ouvisse os alunos lerem umas biografias suas que tinham preparado. E a coisa não andou muito mal até que um "rapaz já crescidote" se referiu à autora de Rosa, Minha Irmã Rosa como natural de Braga (e ela é alfacinha), mãe solteira de cinco filhos, a trabalhar numa banca de peixe e - pasme-se! - cega de nascença... Enfim, Alice Vieira perguntou ao autor de semelhante dislate se achava que aquela descrição correspondia à pessoa que tinha à sua frente, ao que o rapaz respondeu que se limitara a copiar o que estava na net. (Na verdade, confundira a escritora com uma antiga dirigente da ACAPO, Maria Alice Vieira Gomes da Silva.) Mas o mais grave nem foi o facto de este erro se ter repetido em outras escolas, foi Alice Vieira ter perguntado à professora porque não tinha corrigido aquele conjunto de disparates e ela lhe ter respondido que não tivera coragem porque o rapaz, coitadinho, tinha tido tanto trabalho. Com o copy-paste? Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Editora e escritora. Escreve de acordo com a antiga ortografia.


Publicada no Diário de Notícias no dia 4 de novembro de 2018



segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Dois poemas de Maria do Rosário Pedreira

Fotografia de Aurélio Vasques

Maria do Rosário Pedreira lerá os seus versos na Aula de Poesia Díez-Canedo da nossa cidade no dia 4 de abril do próximo ano, e na parte da manhã será apresentada por alunos da nossa escola.

Alguns dados biográficos, retirados da Infopédia, em cujo link podem ler completos:

Escritora portuguesa, Maria do Rosário Pedreira nasceu em 1959, em Lisboa. Fez os estudos superiores na Universidade Clássica de Lisboa, onde se licenciou, em 1981, em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Franceses e Ingleses. Fez ainda o curso de Língua e Cultura do Instituto de Cultura, em Portugal. Como bolseira do governo italiano, esteve em Perugia a frequentar um curso de verão, na Universidade. Foi também aluna do Goethe Institut.



ARTE POÉTICA

Num romance, uma chávena é apenas
uma chávena – que pode derramar
café sobre um poema, se o poeta,
bem entendido, for a personagem.

Num poema, mesmo manchado
de café, a chávena é certamente a
concha de uma mão – por onde eu
bebo o mundo, em maravilha, se tu,
bem entendido, fores o poeta.

No nosso romance, não sou sempre
eu quem leva as chávenas para a mesa
aonde nos sentamos à noite, de mãos
dadas, a dizer que a lata do café chegou
ao fim, mas a pensar que a vida é
que já vai bastante adiantada para os
livros todos que ainda pensamos ler.

No meu poema, não precisamos de café
para nos mantermos acordados: a minha
boca está sempre na concha da tua mão,
todos os dias há páginas nos teus olhos,
escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.

Maria do Rosário Pedreira

in Revista Relâmpago nº 22





Ainda bem
que não morri de todas as vezes
que quis morrer – que não saltei da ponte,
nem enchi os pulsos de sangue, nem
me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

que não atei a corda à viga do tecto, nem
comprei na farmácia, com receita fingida,
uma dose de sono eterno. Ainda bem

que tive medo: das facas, das alturas, mas
sobretudo de não morrer completamente
e ficar para aí – ainda mais perdida do que
antes – a olhar sem ver. Ainda bem

que o tecto foi sempre demasiado alto e
eu ridiculamente pequena para a morte.

Se tivesse morrido de uma dessas vezes,
não ouviria agora a tua voz a chamar-me,
enquanto escrevo este poema, que pode
não parecer – mas é – um poema de amor.





sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A castanha (Ana Luísa Amaral)

Fotografia de Dragoms



A CASTANHA

Rasguei,
como se fosse um pensamento,
uma castanha brava apanhada do chão,
a sua casca acesa e perturbante

A castanha era brava, no sentido
mais breve da palavra,
aguerrida castanha muito jovem,
que lutou contra a força dos meus dedos

Ergui depois, vencido,
o corpo da castanha
usando como berço as minhas mãos

Despido, incandescente,
polimento de cera, cor realmente
nomeando a coisa

Em desvio,
como acontece em tanta natureza,
a zona branca destoando o resto:

uma face de Deus? uma fronteira?
um sobressalto em face do igual?

Hesitante, pousei-a junto às folhas nuas
e ficámos as duas,
como um pensamento,
na nossa dividida
solidão

Ana Luísa Amaral


What's in a Name, Assírio & Alvim, 2017.




quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A mão no arado (Ruy Belo)



O poeta português Ruy Belo faleceu a 8 de agosto de 1978. Tinha apenas 45 anos.


A MÃO NO ARADO

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo


O Problema da Habitação (1962)


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A que não existe (Adélia Prado)

Fotografia de Mender Re



A QUE NÃO EXISTE

Meus pais morreram,
posso conferir na lápide,
nome, data e a inscrição: SAUDADES!
Não me consolo dizendo
'em minha lembrança permanecem vivos',
é pouco, é fraco, frustrante como o cometa
que ninguém viu passar.
De qualquer língua, a elementar gramática
declina e conjuga o tempo,
nos serve a vida em fatias,
a eternidade em postas.
Daí acharmos que se findam as coisas,
os espessos cabelos, os quase verdes olhos.
O que chamamos morte
é máscara do que não há.
Pois apenas repousa
o que não pulsa mais.

Adélia Prado


cfr. "Poema esquisito"




quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Procura da poesia (Carlos Drummond de Andrade)

Museu da Língua Portuguesa, S. Paulo (Fotografia de André Gardenberg)


PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Carlos Drummond de Andrade


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"Adeus, futuro": um clássico (Maria do Rosário Pedreira)



"Adeus, futuro": um clássico

Ao dobrar a esquina de uma rua da infância, havia uma papelaria que desempenhava também as funções de livraria e loja de brinquedos. Era ali que, quando eu estava doente, a minha mãe me comprava umas bonecas de papel com guarda-roupa para recortar (Barbies a duas dimensões) e uns livros com desenhos que ganhavam cores quando se passava um pincel molhado pelas respectivas páginas.

As duas pessoas que atendiam ao balcão estavam tão familiarizadas com a cola Cisne, os guaches Pelikan, o papel Cavalinho e umas borrachas muito ásperas a milhas de cheirarem a morango como com o Ford Anglia em miniatura que faltava na colecção de Dinky Toys do meu irmão ou o escafandro do Action Man que acabara de chegar; e, quando a minha avó, na vizinhança de um aniversário, lhes perguntava por um livro que fosse bom para um rapazinho de 9 anos, também não tinham hesitações em aconselhar um dos volumes daquela colecção de biografias com capa dura que incluía Lincoln, Pasteur, Marie Curie e muitas outras personalidades. Mesmo não se tratando de gente de letras, as pessoas que então vendiam livros sabiam, regra geral, o que estavam a vender.

Já eu era estudante universitária, e de letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir trazer para casa Comunidade, de Luiz Pacheco. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!). Mas essa atenção informada deteriorou-se muito com a industrialização da edição e a substituição das livrarias independentes por hipermercados e cadeias de lojas despersonalizadas. Hoje em dia, não é assim tão raro termos de soletrar o nome de um autor (mesmo conhecido) para o funcionário da livraria o introduzir no computador e nos dizer se, afinal, tem ou não o livro que procuramos. E a ignorância grassa: um dia destes, mandaram-me procurar Octavio Paz na estante dos autores portugueses (lá soar soa) e há uns tempos, numa livraria do centro da capital, um senhor ao meu lado perguntou à funcionária se tinha alguma coisa de Charles Dickens e a reacção imediata dela foi: "Isso é o quê?"

Ainda apalermado com a pergunta, o cliente lá replicou: "Ó minha senhora, é um clássico." E, diante daquela explicação, a rapariga apontou então uma mesa próxima e disse-lhe: "Procure ali." Não resisti a ver o que havia na mesa: Sófocles, Ovídio, Lucrécio, Platão... Adeus, futuro.

Maria do Rosário Pedreira

Editora e escritora, escreve de acordo com a antiga ortografia.


Publicada no Diário de Notícias no dia 21 de outubro de 2018



quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sobre a fidelidade (Manuel António Pina)

Uma crónica de Manuel António Pina, excerto de "Um sítio onde pousar a cabeça" rtp2 2012


SOBRE A FIDELIDADE

Sempre que vejo nos noticiários da política e dos negócios alguns daqueles com quem tive 20 anos, pergunto-me se os nossos 20 anos terão sido um sonho ou se, como temo, é a mesquinha, quando não sórdida, actualidade que é um pesadelo dos nossos 20 anos.

Olhando agora alguns deles ninguém diria que tiveram um dia 20 anos. Mas tiveram. Eu vi. Eu estava lá. Cantei com eles as mesmas canções. Jurei com eles pelas mesmas palavras desmesuradas, acreditei com eles nas mesmas coisas essenciais. Que aconteceu para que alguns de nós tivessem desertado tão facilmente e por um preço tão baixo, transformando-se naquilo contra que tiveram 20 anos e falando agora cinicamente de si mesmos como se falassem de estranhos?

Dante colocá-los-ia, como aos anjos que não foram rebeldes nem fiéis a Deus e pensaram só em si próprios, à porta do Inferno. Eu não sou, porém, tão severo. Personagens (como todos, de um modo ou de outro, somos) de uma tragédia medíocre, a da «vidinha», às vezes dói-me vê-los a tanta falta de escrúpulos à venda sem haver quem a compre. E pergunto-me: não serão eles, no fim de contas, os mais sólidos e mais fiéis, não terão sido, afinal, os únicos que compreenderam e aceitaram?”

Manuel António Pina

(JN, 01/10/2007)


Crónica, Saudade da Literatura (Manuel António Pina), Assírio & Alvim, Lisboa, 2013.



quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Jornadas sobre Manuel António Pina

Fotografia de Adriana Miranda


Luís Miguel Queirós escreveu o seguinte artigo sobre Manuel António Pina no diário Público na passada segunda-feira, dia 22.


Desimaginar o mundo com Manuel António Pina

Assinalando os 75 anos do seu nascimento, um extenso programa de homenagem evocará, em São Paulo, no Brasil e no Porto e Lisboa, a figura humana e a obra literária de Manuel António Pina (1943-2012).

Chamam-se Jornadas Desimaginar o Mundo. Manuel António Pina. 2018 e são uma extensa e diversificada homenagem ao autor de Todas as Palavras, que passará por São Paulo, no Brasil, e pelo Porto e Lisboa, e que terá um dos seus momentos mais simbólicos no próximo dia 18 de Novembro, data em que o poeta faria 75 anos, com a abertura, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto, de um programa que incluirá uma mesa-redonda com Pedro Mexia, Inês Fonseca Santos e João Paulo Cotrim, uma conversa entre amigos do autor, com Álvaro Magalhães, Germano Silva, João Luiz e Arnaldo Saraiva, a exposição Os Livros e, já no dia 19, um encontro com ilustradores e professores.

Esta homenagem portuense abrirá logo no dia 16, na estação de metro da Trindade, com a apresentação de um conjunto de fotografias que se relacionam com poemas de Manuel António Pina, aperitivo para a grande exposição colectiva de fotografia “… desimaginar o mundo, descriá-lo…”, que no dia seguinte se inaugura no Mira Fórum. E após os dois dias de jornadas na Biblioteca Almeida Garrett, o programa muda-se ainda para o palacete dos Viscondes de Balsemão, onde decorrerá um colóquio dedicado à obra de Pina, com convidados como Maria João Reynaud, Osvaldo Silvestre, Gustavo Rubim, Paola Poma, Pedro Eiras, Rui Lage ou Arnaldo Saraiva.

Artigo completo em Público (22-10-2018)



segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Entrevista com Manuel António Pina (26-4-2009)



Entrevista a Manuel António Pina, por Anabela Mota Ribeiro, publicada originalmente na revista Pública, 26/04/2009.


Manuel António Pina vive entre livros, papéis e gatos. Lembranças, palavras e um cão. Nasceu no Sabugal, há 65 anos. É poeta, escreve livros infantis (embora não goste da designação), é cronista. A sua obra está traduzida, foi premiada.

Pina é o tipo de homem que diz ao mesmo tempo coisas como: "Somos matérias de estrelas. Tenho um poema chamado Matéria de Estrelas; e oferece um doce: 'Não quer tomar nada? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã."

Cita T.S. Eliot e mostra fotografias antigas. Aponta para o casaquinho à grilo que usou num Carnaval e explica que religião e religare vêm do mesmo. Para Manuel António Pina, isto anda mesmo tudo ligado. A comida que se come, a morte que se inflige às bactérias com o antibiótico, o tauismo do Winnie The Pooh, a empregada de língua afiada que faz parte da família há 20 anos. "Ler, como diz o Borges, é uma forma de felicidade." Quando era pequeno, os outros miúdos faziam música, cantavam. Ele lia e escrevia versos. 


Tem uma fixação no Winnie The Pooh...

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser... Ao [ Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: "Quem é afinal Borges?"; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, "Borges não existe" [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: "Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei." É verdade - agora digo eu.

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionou-me imenso. Foi A Vida Sexual, do Egas Moniz.

Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta...

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade - que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O ursinho é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado - que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um Sítio onde Pousar a Cabeça (1991). O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância? Onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O ursinho não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra "criar", pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O'Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso para lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos "a terra natal".

E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro..., onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo... Vou dizer-lhe um poema: "Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha." Começa assim. "Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas." Continua por aí abaixo.

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo... E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: "Como é jornalista, viaja muito?" "Não gosto nada de viajar!" E ela: "Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno..." Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto.

Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves (esse sei que morreu na guerra colonial).Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

Há um poema seu que diz assim: "A alegria da viagem é o regresso a casa."

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas.

Sabe o que é isto aqui?

São coisas importantes para tratar.

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias... Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, O casaquinho preto. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

Está.

"Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?" Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. "Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva..."

Vai insistentemente aos poemas... A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: "O que virei eu a ser?" O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária - a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho. Não sei como é que hei-de explicar isto...

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães...

Tem filhos?

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.

Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. "Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel." O "que queres ser quando fores grande?", fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O Cavaleiro Andante vinha aos sábados, chegava na camioneta e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, "ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos"; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fi z o 7.º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da Bíblia, embora leia aquilo como um romance.

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. "Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô...", "Não escrevi nada", "Escreveste, escreveste, encontrei-os ali". Queria convencer-me de que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. "Não escrevi nada, é mentira, foste tu." Esses versos terminavam assim: "Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor"! [gargalhada] Fiquei furioso. Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus? Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: "Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres." Um dia, o tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente, acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há dez anos.

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que "a má poesia normalmente é sincera". Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

Como naquele seu verso: "A palavra sangue não sangra"?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto... A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. "De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?" Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: "Quem somos" ou "o que somos". É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: "Que o escritor é que quis ser eu." E é verdade.

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal... Eu tinha uma namorada e uma Bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: "Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro." E na minha Bíblia tinha uma nota de rodapé: "Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina." Eu dizia à minha namorada: "Hoje tens mais Doutrina que Moral" [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento.

O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da Bíblia. "Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor..." Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. "Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria."

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas.

A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [Aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado.) De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender..., isto é insegurança.

Por que é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata - não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O'Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: O Abandono Vigiado. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. [A gata mia.] O que é que ela está a fazer?

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão. As minhas amigas psicanalistas - são duas ou três - diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, por que é que não mostro que sou inseguro?

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não - são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes..., a psicanalisar! Os psicanalistas contam? Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres. Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.

E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente.) Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito "forex", como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático - é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais um nome horrível o Manuel Ferraz, de 12 anos: "Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração." Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração como o Manuel Ferraz.

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bezinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre de dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: "Sou um sacana." Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos? Andou metido na política? Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, "olha o padre Januário!".

Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos. E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe por que é que não a comprei?

Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l'air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que me afastei completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: Ainda não É o Princípio nem o Fim do Mundo, Calma, É apenas Um Pouco Tarde.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se O País de Pessoas de Pernas para o Ar.

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

Por fim, os gatos. Por que é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários. Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque "quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela" - como escreve Pessoa.

(Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã.)

Anabela Mota Ribeiro

Publicado a 26 Abril de 2009, na revista Pública



Mais uma entrevista:

Entrevista de vida realizada por Pedro Dias de Almeida (editor de cultura da VISÃO), em 2009, para a revista Praça Velha (Câmara Municipal da Guarda, e publicada na revista Visão a 19 de outubro de 2012, data da morte de Manuel António Pina.